domingo, 21 de outubro de 2007

WALTER BENJAMIN - A Modernidade

A imagem do artista de Baudelaire aproxima-se da imagem do herói. Eles se equivalem mutuamente desde o início. A força de vontade, assim se lê no Salon de 1845, deve ser um dom real­mente precioso e aparentemente nunca se utiliza em vão, pois é suficiente para emprestar algo de inconfundível “... mesmo a obras de segunda categoria... O espectador aprecia o esforço; ele bebe o suor". Nos Conseils aux jeunes littérateuts do ano seguinte encontra-se a bela fórmula em que aparece a "contemplation opi-niâtre de l'oeuvre de demain" como a garantia da inspiração. Baudelaire conhece a "indolence naturelle des inspires". Musset nunca teria compreendido quanto trabalho é necessário "para criar uma obra de arte de uma fantasia". Baudelaire, pelo contrário, apresentava-se desde o início perante o público com um código próprio, com regras e tabus próprios. Barrés pretende "reconhe­cer no mais insignificante vocábulo de Baudelaire o vestígio dos esforços que lhe deram a grandeza". "Baudelaire conserva algo de sadio até em suas crises nervosas, escreve Gourmont". A apreciação mais feliz é do simbolista Gustave Kahn quando diz que "o trabalho poético se parecia em Baudelaire com um es­forço físico". Encontra-se na obra deste uma prova desta afir­mação — em uma metáfora que merece ser analisada mais de perto.

Trata-se da metáfora do esgrimista. Nesta, Baudelaire gosta­va de apresentar os traços marciais como traços artísticos. Quando descreve Constantin Guys de quem gostava, procura-o num mo­mento em que os outros dormem; "como ele está ali, debruça­do sobre a mesa, olhando a folha de papel com a mesma vivacidade com que olha, durante o dia, as coisas ao seu redor; como esgrime com o seu lápis, sua pena, seu pincel; como deixa que' a água respingue do seu copo para o teto e como experimenta a pena em sua camisa; como trabalha depressa e com ímpeto, parecendo temer que as imagens lhe fujam. Assim ele é marcial embora solitário, contra-atacando seus próprios golpes".

Na estrofe inicial do Soleil Baudelaire retratou-se nessa "luta fantástica" — e trata-se do único trecho nas Flettrs du mal que o apresenta em seu trabalho poético. O duelo de que participa todo o artista no qual "solta um grito de terror antes de ser vencido" é conhecido como um idílio; a violência do duelo pas­sa a segundo plano aparecendo apenas o seu encanto.

Le long du vieux faubourg ou pendent aux masures Les peraiezmes, abri des secrètes luxures, Quand le soleil cruel frappe à traits redoublés Sur Ia ville et les champs, sur les toits et les blés, Je vais m'exercer seul à ma fantasque escrime, Flairant dans tous les coins les hasards de Ia rime, Trébuchant sur les mots comme sus les pavés, Heurtant paríois des vers dequis longtemps revés.

Uma das intenções de Baudelaire em Spleen de Paris — seus poemas em prosa — era render justiça a estas experiências prosódicas também na própria prosa. Na dedicatória da sua co­letânea ao redator-chefe da "Presse", Arsène Houssaye, ao lado desta intenção ele revela também os verdadeiros motivos destas experiências. "Quem de nós não teria sonhado, em dias de ambi­ção a obra maravilhosa de uma prosa poética? Deveria ser mu­sical sem ritmo e sem rima; deveria ser suficientemente flexível e áspera para adaptar-se às emoções líricas da alma, aos movi­mentos ondulados do sonho, aos choques da consciência. Este ideal, que se pode tornar uma idéia fixa, vai apoderar-se especialmente de quem vive nas cidades gigantes na malha de suas inúmeras relações entrelaçadas".

Se quisermos ter presente este ritmo, seguindo o seu modo de trabalhar, veremos que o flaneur de Baudelaire não é tanto um auto-retrato como se poderia supor. Um traço importante do verdadeiro Baudelaire — aquele que se deu à sua obra — não aparece neste retrato. É o estado de devaneio. No ilaneur é muito evidente o prazer de olhar. Este pode concentrar-se na observa­ção — daqui resulta o detetive amador; ou pode estagnar no simples curioso — e então o flaneur se transforma no badaud.


As descrições sobre a grande cidade não pertencem nem a um nem a outro daqueles tipos. Pertencem àqueles que atraves-saram a cidade como que ausentes, perdidos em seus pensamen-los ou preocupações. A estes faz jus a imagem do fantasque escrime; Baudelaire teve em mira a condição destes, diferente da do observador. No seu livro sobre Dickens, Chesterton fixou com mestria o indivíduo que percorre distraído a grande cidade. As andanças constantes de Charles Dickens começaram nos anos de infância. "Quando terminava seu trabalho só lhe restava vaguear pela cidade e assim percorria meia Londres. Era sonhador quando criança; seu triste destino preocupava-o mais que outra coisa... Ao anoitecer ficava debaixo das lanternas do Holborne e em Charing Cross sofreu o martírio". "Ele não observava à maneira dos pedantes; não olhava Charing Cross para se instruir; não con­tava as lanternas de Holborne para aprender aritmética. .. Dickens não absorvia no seu espírito a cópia das coisas; antes era ele que imprimia seu espírito nas coisas".

Mais tarde Baudelaire já não podia percorrer as ruas de Pa­ris como promeneur. Seus credores perseguiam-no, a doença se anunciava e, além do mais, havia desentendimentos entre ele e sua amante. Nos artifícios da sua prosódia, Baudelaire, poeta, imi­ta os choque que suas preocupações lhe provocam e centenas de idéias com que as contra-atacava. O trabalho que Baudelaire de­dicou aos seus poemas, visível na imagem do combate de esgrima, significa uma seqüência ininterrupta das menores improvisações. As variantes dos seus poemas testemunham a constância do tra­balho e a preocupação pelos mínimos detalhes. Aqueles passeios em que reencontrava seus problemas poéticos em todos os cantos de Paris, não eram sempre voluntários. Nos primeiros anos da sua existência como literato, quando morava no Hotel Pimodan, os amigos tinham ocasião de admirar a discreção com que bania de seu quarto todos os vestígios do trabalho — em primeiro lugar a própria escrivaninha. Naquele tempo visava, simbolicamen­te, à conquista da rua. Mais tarde, após abandonar, passo a passo, sua existência burguesa, a rua tornou-se para ele cada vez mais um refúgio. Mas na flanerie desde o início havia uma consciência da fragilidade desta existência. Na flanerie, a necessidade se faz uma virtude; o que mostra a estrutura característica da concepção do herói em Baudelaire em todas as suas manifestações.

A miséria que aqui se disfarça não é apenas material: refe­re-se à produção poética. Os estereótipos nas experiências de Bau­delaire, a falta de comunicação entre suas idéias, a inquietação imobilizada nos seus traços, indicam que não dispunha de reservas que abrem ao homem um profundo conhecimento e uma ampla visão histórica. "Como escritor Baudelaire tinha um grande de­feito de que ele próprio não desconfiava: era ignorante. O que sabia, sabia profundamente; mas sabia pouco. História, fisiologia, arqueologia, filosofia, permaneceram-lhe estranhas... Pouco se in­teressava pelo mundo exterior; talvez tomasse conhecimento dele, mas de qualquer forma não o estudava". Em face destas crí­ticas e de outras semelhantes justifica-se chamar a atenção para a necessária e útil inacessibilidade daquele que trabalha; chamar a atenção para as influências idiossincráticas inerentes a qual­quer produção; mas os fatos têm também um outro aspecto. Le­vam a que se exija demasiado do produtor em nome de um prin­cípio criador. A exigência é tanto mais perigosa quanto, lisonjeado o orgulho do produtor, ajuda antes de mais nada aos interesses de uma ordem social que lhe é hostil. A maneira de viver do boêmio contribuiu para criar uma superstição quanto à força criadora a que Marx se opõe com uma observação que diz respeito tanto ao trabalho espiritual como ao manual. Marx critica a primeira frase do Gothaer Programmentwurf "O trabalho é a fonte de toda a ri­queza e de toda a cultura": "os burgueses têm boas razões para atribuir ao trabalho uma força criadora sobrenatural; porque pre­cisamente da natureza do trabalho resulta que o indivíduo que não dispõe de outra propriedade a não ser sua força de trabalho, deve em todos os estados sociais e culturais permanecer escravo dos outros indivíduos que se tornaram proprietários das condições objetivas de trabalho". Baudelaire possuía poucas condições objetivas de trabalho espiritual: fora de uma biblioteca e de um apartamento não existia nada a que não precisasse renunciar no decorrer de sua vida, sempre instável tanto dentro como fora de Paris. Em 26 de dezembro de 1853, escreve à sua mãe: "Estou acostumado de tal modo a sofrimentos físicos, sei tão bem me ar­rumar com duas camisas debaixo de uma calça rasgada e de um paletó pelo qual penetra o vento, e estou tão treinado a emendar sapatos furados com palha ou mesmo com papel, que sinto apenas os sofrimentos morais. Não obstante, devo confessar que cheguei a um ponto em que não faço movimentos bruscos e nem ando muito com medo de rasgar as minhas coisas ainda mais". Assim eram as experiências menos inequívocas que Baudelaire sublimou na imagem do herói.

Nesta época, o despojado aparece ainda em outro lugar sob a imagem de herói; mas de forma irônica. É o caso de Marx. Ele fala das idéias do primeiro Napoleão e diz: "O ponto culminante das 'idées napoléoniennes'... é a preponderância do exército. O exército era o point d'honneur do camponês pequeno-proprietário, ele mesmo transformado em herói". Mas agora, sob o terceiro Napoleão o exército já mão é mais a flor da juventude camponesa, ele é a planta palustre do Lumpen-proletariado camponês. Na maior parte é constituído por substitutos... o próprio segundo Bo-naparte é um substituto de Napoleão". O olhar que volta desta visão para a imagem do poeta esgrimista, encontra-a por segun­dos apagada pela do marodeur, do mercenário que 'esgrime' de modo diferente e que erre pelo mundo.

Sobretudo ressoam dois versos famosos de Baudelaire, com sua síncope discreta, através do vácuo social de que fala Marx. Eles terminam a segunda estrofe do terceiro poema de Petites vieilles. Proust acompanha-os com palavras, "il sembíe impossible d'aller au dela".

Ah! que j'en ai suivi de ces petites vieilles! Une, entre autres, à 1'heure ou le soleil tombant Ensanglante le ciei de blessures vermeilles, Pensive, s'asseyaii à 1'écarí sur un bane, Pour entendre un de ces concerts, riches de cuivre, Dont les soldats pariois inondent nos jardins, Et qui, dans ces soirs d'or oú Von se sent revivre, Versent quelque héroisme ou coeur des citadins.

A banda de instrumentos de metal integrada por filhos de camponeses empobrecidos, que faz soar sua música para a popu­lação pobre da cidade, reflete o heroísmo que esconde timidamente na palavra quelque sua incapacidade para convencer; e neste gesto se esconde o único e autêntico heroísmo de que esta sociedade ainda é capaz.

No peito de seus heróis não habita sentimento, que não teria lugar também no peito da gente humilde que se agrupa em volta de uma banda militar.

Os jardins de que se fala no poema como "os nossos" são aqueles abertos ao citadino cuja ansiedade vagueia, em vão, em torno dos grandes parques fechados. O público que passeia neles não é exatamente o mesmo que rodeia o flaneur. "Seja qual for o partido a que se pertença", escreveu Baudelaire em 1851, "é im­possível não ficar emocionado com o espetáculo desta população doentia, que engole a poeira das fábricas, que inala partículas de algodão, que deixa penetrar seus tecidos pelo alvaiade, pelo mercúrio e por todos os venenos necessários à realização das obras-primas... Esta população espera os milagres a que o mundo lhe parece dar direito; sente correr sangue purpúreo nas veias e lança um longo olhar carregado de tristeza à luz do sol e às sombras dos grandes parques". Esta população é o pano de fundo, no qual se destaca a silhueta do herói. Para este quadro, Baudelaire escre­veu uma legenda a seu modo: a expressão la modernité.

O herói é o verdadeiro tema da modernité. Isto significa que para viver a modernidade é preciso uma formação heróica. Esta era também a opinião de Balzac. Assim, Balzac e Baudelaire se opõem ao romantismo. Sublimam as paixões e as forças de deci­são; o romantismo sublima a renúncia e a dedicação. Essa nova concepção é muito mais complexa e rica no poeta do que no ro­mancista. Duas figuras ilustram o que escrevemos. Ambas apre­sentam ao leitor o herói em sua nova versão. Em Balzac, o gladia­dor torna-se commis voyageur. O grande caixeiro viajante Gau-dissart prepara-se para trabalhar na Touraine. Balzac descreve seus preparativos e interrompe-se exclamando: "Que atleta! que arena! e que armas: ele o mundo e sua verborréia". Baudelaire por seu lado, reconhece no proletário o escravo da esgrima; a respeito das promessas que o vinho concede ao deserdado, diz a quinta es­trofe do poema L'Âme du vim:

J'allumerm les yeux de (a femme ravie;

A ton fils je rendrai sa force et ses couleurs

Et serai pour ce frêle athlète de Ia vie

Vhuile qui raffermit les muscles des lutteurs.

Aquilo que o assalariado realiza no trabalho diário não é me­nos importante que o aplauso e a glória do gladiador na antigüi­dade. Esta imagem é material do material das melhores experiên­cias de Baudelaire; resulta da reflexão sobre sua condição própria. Um trecho do Salon de 1859 mostra como queria que fosse inter­pretada. "Quando vejo como Rafael ou Veronese são glorificados com a velada intenção de desvalorizar tudo o que vem depois de­les... então pergunto se uma realização tão notável quanto a de­les, não teria infinitamente mais mérito porque surgiu numa atmos­fera e num lugar hostis”.

Baudelaire gostava de colocar suas teses de maneira chocante numa iluminação barroca. Sua fisolofia teórica fazia ressaltar esses contrastes, sempre que existentes. Esses contrastes recebem algu­ma luz em suas cartas. Mas este processo não é necessário para compreender, no referido trecho de 1859, sua nítida relação com um trecho especialmente hermético que data de dez anos antes; as reflexões a seguir pretendem reconstruir essa relação.

Os obstáculos que a modernidade opõe ao élan produtivo na­tural do indivíduo encontram-se em desproporção com as forças dele. É compreensível que o indivíduo fraqueje, procurando a sorte. A modernidade deve estar sob o signo do suicídio que sela uma vantagem heróica que nada concede à atitude que lhe é hos­til. Esse suicídio não é renúncia, mas paixão heróica. É a conquista da modernidade no campo das paixões. Desta forma o suicídio aparece como a passion particulière de Ia vie moderne, no trecho clássico dedicado a esta. O suicídio dos heróis antigos é uma ex-ceão. "Onde se encontram suicídios nas representações da anti-ide, exceto de Héracles no monte Oeta, de Cato de Utica e Cleópatra?". Isto não quer dizer que Baudelaire as encon-trasse nos heróis modernos; é pobre a indicação sobre Rousseau e Balzac, que se segue a esta frase. Mas a modernidade prepara a matéria bruta de tais reapresentações, e espera pelo seu mestre. Esta matéria bruta encontra-se precisamente nas camadas sociais que se destacam como fundamento da modernidade. Os primeiros eslboços da sua teoria datam de 1845. Na mesma época enra;zou-se nas massas trabalhadoras a idéia do suicídio. "Briga-se pelas re­produções de uma litografia que representa um operário inglês que se suicida pelo desespero de não poder ganhar o pão de cada dia. Um operário vai até a casa de Eugène Sue e ali se enforca; na sua mão encontra-se um papel: 'Pensava que a morte seria mais fácil morrendo na casa da pessoa que nos defende e que gosta de nós' ". Adolphe Boyer, um tipógrafo, publicou em 1841 o pe­queno escrito De l'état des ouvriera et de son amélioration par l'organisation du travai!. Trata-se de uma exposição moderada que procurava trazer para a associação dos operários, as corporações de artesãos itinerantes, presos a velhas tradições corporativas. Não leve êxito: o autor suicidou-se e numa carta aberta exortava seus companheiros de infortúnio a seguir-lhe o exemplo. Baudelaire po­deria muito bem compreender o suicídio como o único ato heróico, que restava às multitudes maladives das cidades, nos tempos da Reação. Talvez visse a morte de Rethel, por quem tinha grande admiração, imaginando-o como um desenhista hábil frente a um cavalete, esboçando na tela os suicidas. Quanto às cores do quadro, a moda ofereceu sua paleta.

A partir da Monarquia de Junho começou a predominar o preto e o cinza na roupa masculina. Baudelaire preocupou-se com esta inovação no Salon de 1845. Na observação final do seu pri­meiro escrito explica: "Entre todos será chamado o pintor, aquele que destaca o lado épico da vida presente e que nos ensina em linhas e cores como somos grandes e poéticos em nossos sapatos de verniz e em nossas gravatas. Esperemos que os autênticos pio­neiros do ano que vem nos dêem o prazer de poder festejar o nascimento de algo verdadeiramente novo". No ano seguinte: "Por falar na roupa, o invólucro do herói moderno —... ela não deveria ter a sua beleza e o seu encanto próprio? Não será esta a roupa de que a nossa época precisa; pois ela ainda sofre e carrega em seus magros ombros pretos o símbolo de uma tristeza eterna. O terno e a sobrecasaca pretos não têm apenas sua beleza política como expressão de igualdade geral — têm igualmente uma beleza poética como expressão da situação espiritual pública representada numa imensa procissão de papa-defuntos — papa-defuntos políti­cos, papa-defuntos eróticos, papa-defuntos particulares. Todos te­mos sempre um enterro a festejar. A roupa do desespero, quase toda igual, prova a igualdade. . . E as pregas na fazenda que fa­zem caretas e que se enroscam como cobras em volta de carne morta, não terão seu encanto oculto?". Estas idéias resultam da profunda fascinação que exerce sobre o poeta a transeunte ves­tida de preto de que fala o soneto. O texto de 1846 termina: "Os heróis da Iliada não chegam aos de vocês, Vautrin, Rastignac, Birotteau e de você Fontarès, que não ousou confessar ao público o que sofreu debaixo da casaca encolhida que todos usamos; — e de você Honoré de Balzac, a figura mais estranha, mais român­tica e mais poética entre todas as que sua própria fantasia criou''.

Em uma crítica à moda masculina, o democrata Friedrich Theodor Vischer, da Alemanha do Sul, chega quinze anos mais tarde a conclusões semelhantes às de Baudelaire. Apenas o seu des­taque se modifica; o que em Baudelaire se encontra como nuance nas cores alvoroçantes da modernidade, apresenta-se em Vischer como argumento nítido na luta política. "Definir a sua posição", escreve Vischer referindo-se à Reação que se estabeleceu desde 1850, "é considerado ridículo, ser enérgico é julgado pueril; por­que então a roupa não era também incolor, frouxa e apertada ao mesmo tempo?". Os extremos se tocam; a crítica política de Vischer, em sua expressão metafórica, coincide com uma imagem da primeira fase de Baudelaire. Num soneto, o Albatroz escrito durante a viagem ao ultramar, com a qual se esperava corrigir o jovem poeta — Baudelaire se reconhece naquelas aves. Descreve a falta de jeito delas no convés do navio, onde a tripulação as deixou, da seguinte forma:

A peine les ont-ils déposés sur les planches, Que ces roía de Pazur, maladroita et honteaux Laissent piteusement leurs grandes ailes blanches Comme des avirons trainer à cote d'eux. Ce voyageur ailé, comme il est gaúche et veule!

Acerca das mangas largas, caindo sobre o pulso da casaca diz Vischer: "Estas já não são mais braços, mas penas rudimen­tares, cotos de penas de pingüim, barbatanas de peixe, e movimen­to das roupas amorfas, ao andar, parece um tolo e simplório agi­tar-se, empurrar, correr, e remar ao mesmo tempo". A mesma concepção da situação — a mesma imagem.

Mais claramente Baudelaire determina assim a face da mo­dernidade sem renegar na sua testa o sinal de Caim: "A maioria dos poetas que trataram de assuntos realmente modernos conten­tou-se com temas estereotipados, oficiais — estes poetas preocupa-pam-se com nossas vitórias e nosso heroísmo político. Mas fazem-no também de mau grado, e apenas porque o governo o ordena e lhes paga. Mas existem temas da vida privada muito mais heróicos. O espetáculo da vida mundana e de milhares de existências desordenadas; vivendo nos submundos de uma grande cidade — dos criminosos e das prostitutas — A 'Gazette des Tribunaux' e o iMo-niteur' provam que apenas precisamos abrir os olhos para reco­nhecer o heroísmo que possuímos".

O apache penetra, aqui, na imagem do herói. Nele se encon­tram os caracteres, que Bounoure assinala na solidão de Baudelaire — - "um nolime tangere, um isolamento do indivíduo na sua pe­culiaridade". O apache renega as virtudes e as leis. Denuncia de uma vez para sempre o contrato social. Assim, pensa estar se­parado do burguês por um mundo. Não reconhece nele os traços do cúmplice, que logo depois foram apresentados, com tão grande efeito, por Hugo nos Châtiments. No entanto, as ilusões de Baude­laire foram mais duradouras. Elas fundamentam a poesia carac­terística do apache. Fazem parte de um gênero que em oitenta anos não foi destruído. Baudelaire foi o primeiro a tratar deste tema. O herói de Poe não é o criminoso, mas o detetive e, Balzac, por seu lado, conhece apenas o grande marginal da sociedade. Vautrin sofre a ascensão e queda; tem uma carreira como todos os heróis de Balzac. A carreira dos criminosos é igual às outras. Tam­bém Ferragus pensa em algo grande e amplo; é do tipo dos carbonari O apache, que depende totalmente da sociedade e da grande cidade, não existia na literatura antes de Baudelaire. O cunho mais expressivo deste tema em Fleurs du mal, o Vin de fassassin, tor­nou-se ponto de partida de um gênero parisiense. O Chat Noir vi­rou o seu lugar de encontro. O lema dos primeiros tempos herói­cos foi "passant, sois moderne".

Os poetas encontram na rua o lixo da sociedade e a partir dele fazem sua crítica heróica. Parece que assim se integra no seu ilustre tipo um tipo semelhante, penetrado pelos traços do trapeiro que tanto preocupava Baudelaire. Um ano ante do Vindes chiffoniers apareceu uma representação prosaica da figura; "Temos aqui um homem — ele deve apanhar na capital o lixo do dia que passou. Tudo o que a grande cidade deitou fora, tudo o que perdeu, tudo o que despreza, tudo o que destrói — ele re­gistra e coleciona. Coleciona os anais da desordem, o Cafarnaum da devassidão, seleciona as coisas, escolhe-as com inteligência; pro­cede como um avarento em relação a um tesouro e agarra o entu­lho que nas maxilas da deusa da indústria tomará a forma de ob­jetos úteis ou agradáveis". Esta descrição é uma única, longa metáfora, para o procedimento do poeta segundo o coração de Bau-delaire. Trapeiro ou poeta — o lixo se refere a ambos; ambos realizam solitariamente seu trabalho a horas, em que os burgueses dormem; o gesto é o mesmo em ambos. Nadar fala do "pas saccadé" de Baudelaire; é o passo do poeta que erra pela cidade procurando rimas; também deve ser o passo do trapeiro, que a todo instante pára no seu caminho, apanhando o lixo que encon­tra. Há fortes indícios de que Baudelaire pretendia veladamente chamar a atenção sobre este parentesco. De qualquer modo, trata-se de uma adivinhação. Sessenta anos mais tarde aparece em Appo-linaire, um irmão desse poeta degenerado em trapeiro. É Cronia-mantal, o poète assassine — primeira vítima do Pógromo, que deve acabar em todo o mundo com a raça dos líricos. A poesia do apache é dúbia. O esboço representa o herói da grande cidade ou o herói será antes o poeta, que constrói sua obra com esse mate­rial? A teoria da modernidade dá margem a ambas as inter­pretações.

Entretanto, num poema posterior Les plaintes d'un Icare, o Baudelaire maduro diz que já não sente como os indivíduos entre os quais na sua juventude buscava heróis.

Les amants des prostituées Sont heureux, dispôs et repus; Quant à moi, mes br as sont rompus Pour avoir étreint des nuées.

O poeta, o substituto do herói da antigüidade, como diz o tí­tulo do poema, tinha que ceder ao herói moderno, que tem a vida relatada pela "Gazette des Tribunaux". Na realidade, no con­ceito do herói moderno já se esboça esta renúncia. Ele está pre­destinado à derrota e não precisa ressuscitar qualquer dos trági­cos para apresentar tal necessidade. Mas a modernidade termina no momento em que conquista o seu direito. Só depois vai pas­sar pela prova. E então se mostrará se ela própria tem possibili­dade de transformar-se em antigüidade. Baudelaire formula constantemente essa pergunta. Ele com­preendeu a reivindicação de imortalidade como sua própria reivin­dicação de ser lido uma vez como escritor antigo. Considera como concepção da tarefa artística em geral "que toda a modernidade deva ter valor para se tornar futuramente antigüidade". Muito acertadamente Gustave Kahn nota em Baudelaire um "refus de occasion tendu par Ia nature du pretexte lyrique". O que fez com que se tornasse reservado em relação a certas ocasiões era a consciência dessa tarefa. Para ele, na época em que vivia, nada se aproxima tanto da "tarefa" do herói antigo, dos "trabalhos" de um Hércules, como a tarefa de que ele próprio se impôs: dar feição à modernidade.

Entre todas as relações que a modernidade possa ter, a rela-ção com a antigüidade é a melhor. Baudelaire encontra esta idéia apresentada em Victor Hugo. "O destino o levou,. . . a transfor­mar a ode antiga e a tragédia antiga.. . nos poemas e dramas que dele conhecemos". A modernidade caracteriza uma época; caracteriza simultaneamente a força que age nesta época e que faz com que ela seja parecida com a antigüidade. Baudelaire con-cede a Hugo esta força de mau grado e apenas em certos casos. Wagner, no entanto, era para ele a difusão ilimitada e autêntica desta força. Na escolha de seu tema e no seu procedimento dra­mático, "Wagner se aproxima da antigüidade" com tão apaixona­da força de expressão que no momento é o representante mais im­portante da modernidade. A frase contém embrionariamente a teoria de Baudelaire sobre a arte moderna. Segundo essa teoria, o exemplo modelar da antigüidade se limita à construção; a substância e inspiração da obra é o objeto da modernité. "Ai daquele que estuda outra coisa na antigüidade de que não a arte pura, a lógica, o método geral. Se ele se aprofundar demasiado na anti­güidade. . . renuncia. . . aos privilégios que a ocasião lhe ofere­ce". E nas frases finais do ensaio sobre Guys lê-se: "Ele bus­cou em toda a parte a beleza transitória, fugaz da nossa vida pre­sente. O leitor nos permitiu chamá-la de modernidade". Em resumo, a doutrina se apresenta da seguinte forma: "Na beleza colaboram um elemento eterno, imutável e um elemento relativo, limitado. Este último. é condicionado pela época, pela moda, pela moral, pelas paixões. O primeiro elemento não seria assimi­lável.. . sem este segundo elemento". Não se pode dizer que isto seja profundo.

A teoria da arte moderna é o ponto mais fraco na concepção de Baudelaire sobre a modernidade; esta apresenta os motivos mo­dernos; o objeto da teoria seria talvez, uma discussão sobre a arte antiga. Baudelaire nunca tentou algo parecido. A sua teoria não dominou a renúncia, a qual aparece em sua obra como perda da natureza e perda da ingenuidade. Sua dependência de Poe, inclusive em suas formulações, é uma expressão da sua parciali­dade. Sua orientação polêmica é outra; ela destaca-se do fundo homogêneo do historicismo, do alexandrismo acadêmico em voga com Villemain e Cousinin. Nenhuma das suas reflexões estéticas apresentou a modernidade em sua simbiose com a antigüidade, o que sucede em certos poemas das Fleurs du mal.

Entre eles prevalece o poema Le cygne. Não é em vão seu caráter alegórico. A cidade, em permanente movimento, cai em torpor. Torna-se frágil como vidro, mas também transparente como vidro em relação ao seu significado. ("La forme d'une ville/Change píus vite, hélas! que le coeur d'un mortel,"). A estrutura de Paris é frágil; rodeada por símbolos de fragilidade. Símbolos na­turais da criação — a negra e o cisne; e símbolos históricos — Andrômaca, "a viúva de Heitor e a mulher de Heleno". O traço comum neles é a tristeza sobre o passado e a falta de esperança no porvir. Em última análise a modernidade se aproxima da anti­güidade neste espírito caduco. Paris, sempre que aparece nas Fleurs du mal, traz a sua característica. O "Crépuscule du Matin" é o so­luçar de um adulto, imitado no material de uma cidade; Le soleil mostra esta ao sol, rota como um velho tecido; o ancião que todos os dias pega, de novo, resignado seus instrumentos de tra­balho, — porque as preocupações não terminaram com a idade — é a alegoria da cidade; as anciãs — Les petites vieilles — entre seus habitantes são os únicos espiritualizados. Estes poemas devem à reserva que os caracteriza seu sucesso através da décadas. Trata-se da reserva contra a grande cidade. Ela nos distingue de quase toda a poesia sobre a grande cidade que veio depois deles. Uma estrofe de Verhaeren é suficiente para compreender de que se tra­ta aqui.

Et qu'importent les maux et les heures dementes

Et les ouves de vice ou Ia cite fermente

Si quelque jour, du fond des brouillards et des voiles

Surgit un nouveau Christ, en lumière sculpté

Qui souléve vers lui Vhumanité

Et Ia baptise au feu de nouvelles étoiles.

Baudelaire não conhece tais perspectivas. Seu conceito da ca­ducidade da grande urbe está na origem da duração dos poemas que escreveu sobre Paris.

Também o poema Le cygne é dedicado a Hugo; talvez um dos poucos cuja obra, segundo opinião de Baudelaire, revela uma nova antigüidade. Até este ponto a fonte de inspiração de Hugo totalmente diversa da de Baudelaire. Hugo desconhece a capa-cidade de entorpecimento que — se uma imagem biológica fosse permitida — se manifesta como uma espécie de mimese da morte, centenas de vezes, na poesia de Baudelaire. Em contrapartida, po-de-se falar de uma disposição chthônica de Hugo. Sem ser espe-cialmente mencionada, ela se impõe nas frases seguintes de Charles Péguy. Destas se deduz onde se deve procurar a diferença entre a concepção da antigüidade de Hugo e a de Baudelaire. "Isto é certo: quando Hugo via o mendigo na estrada... ele o via como

na realidade. . . na estrada antiga o mendigo antigo, o suplicante antigo. Quando via o revestimento do mármore de uma das nossas chaminés modernas, ele o via como é: ou seja, a pedra da chaminé. A pedra da chaminé antiga. Quando via a porta da casa e o umbral (que é normalmente uma pedra trabalhada) re-conhecia nesta pedra a linha antiga; a linha do umbral sagrado que é o mesmo. Não há comentário melhor em relação ao seguinte trecho dos "Misérables": "As tabernas de Foubourg Saint-Antoine pareciam-se com as tabernas do Aventino, erigida sobre a gruta de Sibila e que estão em conexão com as inspirações sa­gradas; as mesas destas tabernas eram praticamente tripés e Ênio lula do vinho sibilino que lá se bebia". Da mesma concepção re­luta a obra, em que aparece a primeira imagem de uma "antigüi­dade parisiense", o ciclo de poemas de Hugo A l'Arc de Triomphe. A glorificação deste monumento parte da visão de um panorama campestre parisiense, de uma "immense campagne", em que per­duram apenas três monumentos da cidade perecida; a Sainte Cha-pelle, a Coluna Vendôme e o Arco do Triunfo. A alta importân­cia que este ciclo tem na obra de Hugo corresponde à posição que ocupa na criação de uma imagem da cidade de Paris do século 19 ndaptada a uma imagem da antigüidade. É do ano de 1837.

Já sete anos antes anota o historicista Friedrich von Raumer nas suas cartas Briefe aus Paris und Frankreich im Jahre 1830: "Da torre de Notre-Dame vi ontem a gigantesca cidade; quem construiu a primeira casa, quando desmoronará a última e o chão se assemelhará ao de Tebas e Babilônia". Hugo descreveu este chão como seria quando um dia "esta margem, onde a água se rebenta em arcos sonoros de ponte, for restituída aos juncos mur-murantes que se inclinam".

Mais non, tout será mort. Plus rien dans cette plaine Qvtun peuple évanoui dont elle est encore pleíne.

Léon Daudet, cem anos após Raumer, de Sacré-Coeur, em outro lugar elevado da cidade, lança um olhar sobre Paris. Na sua visão reflete-se a história da "modernidade" até o momento numa contradição horripilante: “Olha-se de cima sobre este ajuntamento de palácios, monumentos, casas e barracos e fica-se com a sensação de que são predestinados a uma ou mais catástrofes — meteorológicas ou sociais. Passei horas no alto de Fourvières com a vista sobre Lyon, no alto de Notre-Dame de la Garde com a vista sobre Marseille, no alto do Sacré-Coeur com a vista sobre Paris”.

O que mais nitidamente se verifica nestes outeiros é a amea­ça. As aglomerações de pessoas são ameaçadoras; o homem pre­cisa de trabalho, isto está certo, mas também tem outras necessi­dades... Entre outras necessidades tem o suicídio, inerente a ele e à sociedade que o forma; e é mais forte que o seu instinto de sobrevivência. Assim, ficamos admirados olhando do alto de Sacré-Coeur, de Fourvières e de Notre-Dame de Ia Garde para baixo, que Paris, Lyon e Marseille ainda existam". Esta é a feição que a passion moderne que Baudelaire reconheceu no suicídio, re­cebeu no século presente.

A cidade de Paris entrou neste século com a feição que Haussmann lhe deu. Ele realizou a sua transformação da imagem da cidade com os meios mais humildes: pá, machadinha, alavan­ca, e coisas semelhantes. E que grau de destruição provocaram já estes instrumentos limitados! E como cresceram desde então com as grandes cidades os meios que a podem destruir! Que ima­gens do futuro provocam! — Os trabalhos de Haussmann estavam no seu auge; bairros inteiros foram destruídos, quando numa tarde do ano de 1862 Maxime Du Camp se encontrava na Pont Neuf. Esperava pelas suas lentes perto da loja de um oculista. "O autor, à beira da velhice, experimentou um daqueles momentos, em que o homem, refletindo sobre a vida passada, vê em tudo estam­pada a sua própria melancolia. A redução da sua força visual, que a consulta do oculista tinha acusado, fez com que se lem­brasse da lei da inevitável caducidade de todas as coisas huma­nas... Ele, que viajara muito no Oriente, e nos desertos, cuja areia é a poeira dos mortos, pensou de repente que também esta cidade cheia de vida à volta dele, deveria um dia morrer como morreram tantas capitais. Lembrou-se como estaríamos extrema­mente interessados numa descrição exata de Atenas nos tempos de Pericles; de Cartago, nos tempos de Barca; de Alexandria, nos tempos dos Ptolomeus; de Roma, nos tempos dos Césares. . . Gra­ças a uma intuição fulminante, que às vezes faz nascer um tema extraordinário, ele projetou escrever o livro sobre Paris, que os historicistas da antigüidade não haviam escrito, sobre suas próprias cidades. .. A obra da sua maturidade apareceu perante sua imaginação".

No poema de Hugo A l'Arc de Triomphe, na grande descrição técnica administrativa de Du Camp da sua cidade reconhece-se a mesma inspiração que modelou decisivamente a idéia de Baudelaire sobre a modernidade.

Haussmann começou sua obra em 1859. Já estava esboçada por projetos de lei e pressentida na sua necessidade. Du Camp escreveu no livro referido: "Paris, após 1848, estava na iminência de se tornar inabitável. A constante expansão da rede ferroviária. . . acelerava o tráfego e o aumento da população da «idade. As pessoas sufocavam nas velhas ruas, estreitas, sujas, confusas, em que estavam metidas como em redil porque não havia outra solução". No início dos anos cinqüenta a popu­lação de Paris começou a resignar-se à idéia de uma inevitável e grande purificação da imagem da cidade. É de supor que esta purificação, no seu tempo de incubação, poderia ter um efeito tão forte, ou maior ainda, sobre um instável espírito fantasista «•orno o próprio aspecto dos trabalhos urbanísticos. De qualquer forma, a obra, cuja relação subterrânea com a grande transforma­ção de Paris não se deve pôr em dúvida, já estava terminada alguns anos antes da transformação ter sido iniciada. Eram as gravuras de Meryon sobre Paris, Ninguém se impressionou mais com elas do que Baudelaire. Para ele o aspecto arqueológico da catástrofe, tal como encontrava na base dos sonhos de Hugo, não era o mais importante; a antigüidade criou-se de uma vez, uma Atenas surgiu da cabeça do Zeus ileso, da modernidade ilesa. Meryon acentuou a feição antiga da cidade sem abandonar sequer uma pedra. Era este aspecto do tema a que Baudelaire se tinha entregado constantemente na idéia da modernidade. Admirava Meryon apaixonadamente.

Ambos tinham afinidades eletivas. O seu ano de nascimento fora o mesmo; a sua morte dista poucos meses. Ambos morre­ram solitários e gravemente perturbados; Meryon como demente em Charenton, Baudelaire, sem fala, numa clínica particular. A glória de ambos demorou a chegar. Durante a vida de Meryon, Baudelaire era quase o único a defendê-lo 60. Nos seus poemas em prosa pouco se pode comparar com o breve texto sobre Meryon. Falando deste, presta homenagem à modernidade; mas homena­geia a feição antiga desta. Também em Meryon se interpenetram a antigüidade e a modernidade; também em Meryon aparece in­confundivelmente esta forma de entrelaçamento, a alegoria. Em seus apontamentos a legenda é importante. Se a loucura entra no seu texto, sua sombra sublinha apenas o "significado". Os versos de Meryon à vista du Pont Neuf são como interpretação, sem pre­juízo de sua sutileza, muito próximos do Squelette laboureur:

Ci-git du vieux Pont Neuf Uexacte ressemhlance Tout radoubé de neuí Par recente ordonnance. O savanta médicins, Habites chirugiens, De nous porquoi ne faire Comme du pont de pierre.

Geffroy descobre o âmago da obra de Meryon, e seu parentesco com Baudelaire, mas sobretudo a fidelidade na reprodução da ci­dade de Paris, que logo estaria cheia de campos de ruínas; isto quando procura a singeleza destas imagens na idéia "que eles, embora reproduzindo diretamente a vida, dão a impressão de vida terminada, que já está morta ou para morrer". O texto de Baudelaire sobre Meryon dá a entender acidentalmente a impor­tância desta anitgüidade parisiense. "Raramente vimos represen­tada com mais força poética a solenidade natural de uma grande cidade; a majestade das massas amontoadas de pedras, as torres de igreja, cujo dedo erguido aponta para o céu, os obeliscos da indústria, que oferecem exércitos de fumaça contra o firmamento, os andaimes que colocam a sua estrutura bordada a crivo, feito teia de aranha, de forma tão paradoxal sobre o bloco ma­ciço das construções, o céu úmido impregnado de ira e pesado de rancor, e as vistas profundas, cuja poesia habita nos dramas, com que são equipados no espírito — não foi esquecido nenhum dos elementos complexos, de que é composto o cenário caro e glo­rioso da civilização".

Entre os projetos cujo fracasso pode ser lamentado como uma perda, deve-se contar o do editor Delâtre, que queria publicar a seqüência de Meryon com textos de Baudelaire. Estes textos não foram escritos por culpa do gráfico; este só concebia a tarefa de Baudelaire como um inventário das casas e ruas reproduzidas por ele. Se Baudelaire tivesse realizado esta tarefa, as palavras de Proust sobre "o papel das cidades antigas na obra de Baudelaire e a cor escarlate que elas lhe comunicam, às vezes", teriam mais sentido do que hoje parece. Entre estas cidades Roma esta­va para ele em primeiro lugar. Numa carta a Leconte de Lisle confessa sua "predileção natural" por esta cidade. Provavelmente chegou a Roma pelas ruas de Piranesi, em que as ruínas não res-tauradas ainda pareciam fazer parte da nova cidade.

O soneto que figura como trigésimo-nono poema das Fleurs du mal começa:

Je te donne ces vers aiin que si mon nom Aborde heureusemetú aux époques lointaines, Ei iait rever un soir les cervelles rumaines, Vaisseau favorisê par un grand aquilon, Ta mémoire, pereille aux fables incertaines, Fatigue le lecteur ainsi qu'on typanon.

Baudelaire queria ser lido como antigo. A exigência venceu-o com rapidez surpreendente. Porque o futuro longínquo, as époques lointaines de que fala o soneto chegaram tantas décadas após a sua morte quando Baudelaire imaginava que talvez seriam séculos. É verdade que Paris ainda existe; e as grandes tendências da evo­lução social são ainda as mesmas. Mas quanto mais duradouras permaneceram tanto mais caduco como experiência, ficou tudo o que era considerado como "verdadeiramente novo". A modernidade ficou menos igual a ela mesma; e a antigüidade, supostamente nela contida, apresenta na verdade o aspecto do caduco. "Reen­contramos Herculano debaixo das cinzas; mas alguns anos cobri-am os costumes de uma sociedade melhor que toda a poeira dos vulcões".

A antigüidade de Baudelaire é a romana. Só num lugar a nntigüidade grega penetra no seu mundo. A Grécia forneceu-lhe a imagem da heroína que parecia digna e possível de ser trans­posta para a modernidade... Nomes gregos — Delfina e Hipó-lita — têm as figuras das mulheres em um dos maiores e mais famosos poemas das Fleurs du mal. É dedicado ao amor lésbico. A lésbica é a heroína da modernidade. Nela, um motivo erótico de Baudelaire — a mulher, que testemunha a dureza e masculi-nidade — foi penetrado por um motivo histórico — o da gran­deza do mundo antigo. Isto faz com que a posição da mulher lés-bica nas Fleurs du mal seja inconfundível. Assim se explica por­que Baudelaire durante muito tempo lhes dedicou o título Les lesbiennes. De resto, Baudelaire está muito longe de ter desco­berto a lésbica para a arte. Já Balzac a conheceu na sua Filie aux yeux d'or, Gautier em Mademoiselle de Maupin; Delatcuche em Fragoletta; Baudelaire encontrou-a também em Delacroix; um tanto veladamente criticando os quadros daquele, fala de uma "manifestação heróica da mulher moderna na direção do infer­nal".

O motivo se encontra já no saintsimonismo, que freqüente­mente empregou nas suas veleidades cultistas a idéia do Andró­gino. Do motivo faz parte o templo que deveria brilhar na Neui Stadt de Deveyrier. Um adepto da escola observa a respeito des­te: "O tempo deve representar um Andrógino, um homem e uma mulher... A mesma divisão deve ser prevista para toda a cidade, mesmo para todo o reino e toda a terra; vai haver o hemisfério do homem e o da mulher". Nas idéias de Claire Demar, mais compreensivelmente do que nesta arquitetura, que não foi cons­truída, exprime-se a utopia saintsimonista no seu conteúdo antro­pológico. Claire Demar foi esquecida em face das fantasias me-galômanas de Enfantin. O manifesto que esta deixou está mais próximo do âmago da teoria de Saint Simon — a hipostasia da indústria como a força que move o mundo — do que o mito-mãe de Enfantin. Também neste texto se trata da mãe, mas num sen- tido essencialmente diverso do que naqueles que abandonaram a França para procurá-lo no Oriente. Na vasta literatura do tempo que se preocupou com o futuro da mulher, esse texto tem uma posição singular pela sua força e paixão. Aparece com o título Ma loi d'avenir. No seu parágrafo final lê-se: "Abaixo a mater­nidade! Abaixo a lei de sangue! Eu digo: abaixo a maternidade! A mulher uma vez libertada... de homens que lhe pagam o preço do corpo... deverá a sua existência... apenas ao seu próprio trabalho. Para tal, deve dedicar-se a uma obra e cumprir uma função... Assim, vocês devem decidir-se a tirar o recém-nascido do peito da mãe natural para dá-lo aos braços da mãe social, aos braços da ama empregada pelo Estado. Assim, a criança terá uma educação melhor.. . Só então, e não antes, homem, mulher, e criança serão libertados da lei do sangue, da lei da exploração da humanidade por ela mesma".

Aqui se manifesta, na sua forma original, a imagem da mu­lher heroína que Baudelaire assimilou. Sua figuração lésbica não foi apenas realizada pelos escritores, mas no próprio círculo saint­simonista. Com certeza os cronistas da própria escola nem sempre realizaram o melhor testemunho disto. Mas, pelo menos, existe uma estranha confissão de uma mulher que se considerava adepta da doutrina de Saint Simon: "Comecei a amar meu próximo, a mulher, tanto quanto meu próximo, o homem... Deixei ao ho­mem sua força física e a forma de inteligência que lhe é própria, mas coloquei ao lado dele, como equivalente, a beleza física da mulher e os dons espirituais que lhe são próprios". Como eco desta confissão conhece-se uma reflexão crítica de Baudelare, per­feitamente inequívoca. Refere-se à primeira heroína de Flaubert. "Madama Bovary era um homem segundo a sua melhor energia e segundo seus objetivos ambiciosos, e também nos seus sonhos mais profundos. Esta estranha Andrógina recebeu, como a Palas Alonéia que saiu da cabeça de Zeus, toda a força sedutora próxima de um espírito masculino num encantador corpo feminino".

E mais, sobre o próprio poeta: "Todas as mulheres intelectuais devem agradecer-lhe ter elevado a 'mulherzinha' a uma altura... e que participa da natureza dupla que forma o homem perfeito ser tão capaz de raciocinar como de sonhar". Com um só golpe, o que bem sabia fazer, Baudelaire eleva a esposa pequeno-burguesa de Flaubert à heroína.

Na poesia de Baudelaire existe uma série de fatos importan­tes e evidentes, que passaram despercebidos. Por exemplo, a ori­entação contraditória dos dois poemas lésbicos situados um após outro, nos Epaves. Lesbos é um hino ao amor lésbico; Delphine et Hippolyte pelo contrário, é uma condenação desta paixão em­bora vibrante de pena.

Que nous veulent les lois du juste et de Vinjuste? Vierges au coeur sublime, honneur de 1'archipel Votre religion comme une autre est auguste, Et famour se rira de 1'Enier et du Ciel!

Assim se lê no primeiro destes poemas; no segundo:

— Descendez, descendez, lamentables victimes, Descendez le chemin de Venfer éternel!.

A evidente discrepância explica-se da seguinte maneira: dado que Baudelaire não via a mulher lésbica como problema — nem sob o ponto de vista social nem natural — assim também não sentia, como homem comum, qualquer relação com ela. Tinha lugar para ela na imagem da modernidade; mas não a reconhecia na realidade. Por esta razão, escreve despreocupadamente: "Co­nhecemos a escritora filantropa, a poetisa republicana, a poetisa do futuro, seja adepta de Fourier ou de Saint-Simon — nunca acostumamos o nosso olho a todo este comportamento, sem sen­tido e degradante... esta imitação do espírito masculino". Se­ria absurdo supor que Baudelaire com seus poemas pensou de­fender a mulher lésbica na vida pública. Isto se prova nas pro­postas que fez ao seu advogado para o discurso final no processo contra as Fleurs du mal. Ele não separa a proscrição burguesa pública da natureza heróica desta paixão. O "descendez, descendez, lamentables victimes" é a última frase que Baudelaire lança à mulher lésbica. Abandona-se à aniquilação. Ela não pode salvar-se porque a confusão de Baudelaire a seu respeito é insolúvel.

O século XIX, sem restrição, começou a empregar a mulher no processo de produção fora de casa. Fê-lo predominantemente de maneira primitiva; empregou-a nas fábricas. Era óbvio que traços masculinos tinham que surgir nela no decorrer do tempo, porque o trabalho na fábrica a condicionava, sobretudo a enfeiava. As formas mais elevadas de produção, e a luta política poderiam favorecer traços masculinos de maneira mais nobre. Talvez neste sentido possamos entender o movimento das Vésuviennes.

Este colocou à disposição da Revolução de Fevereiro um exército composto de mulheres. "Nós nos chamamos Vésuviennes", lê-se nos estatutos, "para exprimir que em toda a mulher de nosso grupo age um vulcão revolucionário". Nessa tal modificação de comportamento feminino revelaram-se tendências, que puderam ocupar a fantasia de Baudelaire. Não seria de admirar se sua pro­funda idiossincrasia contra a gravidez estivesse em relação com isto. A masculinização da mulher também seria um indício deste fato. Baudelaire apoiava, portanto, este processo. Mas, ao mesmo tempo, preocupava-se em desligá-lo da tutela econômica. Assim terminava por dar a esta evolução um enfoque puramente sexual. O que não podia desculpar em George Sand, era talvez ter profanado os traços de uma lésbica pela sua aventura com Musset.

O atrofiamento do elemento "prosaico" que se revela na po­sição de Baudelaire frente à mulher lésbica, também é caracte­rístico dele em outros poemas. Causa estranheza a observadores atenciosos. Jules Lemaítre escreve em 1895: "Estamos perante uma obra cheia de artifícios e contradições intencionais... No momento em que ela se compraz na descrição mais crassa dos de­talhes mais aflitivos da realidade, permanece num espiritualismo que nos afasta da impressão imediata que as coisas exercem sobre nós... Baudelaire considera a mulher como escrava ou como ani­mal, mas presta-lhe as mesmas homenagens que à Virgem Maria... Amaldiçoa o 'progresso', abomina a indústria do século, no en­tanto goza a atmosfera especial que esta indústria trouxe para a nossa vida de hoje... Creio que o específico de Baudelaire con­siste em unir sempre duas formas opostas de reação... poder-se-ia dizer, uma passada, a outra atual. Uma obra-prima da vontade: a última novidade no campo da vida sentimental". Era inten­ção de Baudelaire apresentar esta atitude como ato grandioso da vontade. Mas o reverso dela é uma falta de convicção, de conhe­cimento, de constância. Baudelaire estava exposto a uma mudan­ça brusca, de choque, em todas as suas reações.

Mais sedutoras eram, para eles, outras formas de viver nos ex-tremos, as que se criam nos encantamentos que emanam de muitos dos seus versos perfeitos; alguns destes evidenciam tais formas.

Vois sur ces canaux

Dormir cea vaisseaux

Dont Vhumeur est vagabonde;

Cest pour assouvir

Ton moinde désir

Quyils viennent du bout du monde.

Nesta estrofe famosa existe ritmo embalador; o seu movi­mento prende os navios, que se encontram amarrados no canal. Baudelaire desejava ser embalado nos extremos, como é privilégio dos navios... A imagem deles surge quando se trata de sua idéia fundamental, profunda, secreta e paradoxal: o ser levado por, o ser salvo na grandeza. "Estes belos, grandes navios, como são embalados imperceptivelmente na água tranqüila, estes navios for­tes, que têm um aspecto tão ansioso e tão ocioso — será que não nos perguntam numa linguagem muda: quando embarcamos para a felicidade?". Nos navios une-se o desprendimento com a dis­posição para o extremo emprego de forças. Isto atribui-lhes uma secreta importância. Há uma fórmula especial em que no homem também se unem a grandeza e o desprendimento. Ela domina a existência de Baudelaire, que a decifrou chamando-lhe "a moder­nidade". Quando se perde no espetáculo dos navios no ancora-douro, é para decifrar neles uma parábola. Seu herói é tão forte, tão cheio de sentido, tão harmonioso, tão bem construído como aqueles barcos de vela. Mas o mar alto acena em vão para ele. Porque uma má estrela guia a sua vida. A modernidade revela-se como sua fatalidade. Nela o herói não está previsto; ela não tem emprego para este tipo. Ela amarra-o para sempre no porto se­guro; abandona-o a uma eterna ociosidade. Nesta sua última incor­poração o herói aparece como dandy. Ao encontrar uma destas fi­guras, perfeitas em sua força e serenidade, em todos os gestos, diz-se "aquele que passa é talvez rico; mas com toda certeza se esconde neste transeunte um Hércules para quem não existe qual­quer trabalho". Dá a impressão de ser carregado pela sua grandeza. Por isto, é compreensível que Baudelaire acreditasse a sua flanerie vestida em certas horas com a mesma dignidade que o esforço da sua força poética.

O dandy se apresentava a Baudelaire como um sucessor de grandes antepassados. O dandysmo é para ele como "o último brilho do heróico em tempos da decadência". Gostou de descobrir em Chateaubriand uma referência a dandys índios — teste­munho do passado florescimento daquelas tribos. Na verdade, é impossível não compreender que os traços que se encontram reu­nidos no dandy índio têm um sinal histórico muito determinado. O dandy é uma característica dos ingleses, então líderes no co­mércio mundial. A rede comercial que se estende sobre a terra encontrava-se nas mãos dos especuladores da Bolsa de Londres; suas malhas sofreram palpitações mais variadas, freqüentes e sur­preendentes. O comerciante tinha que reagir a elas, mas não trair suas reações. Os dandys adotaram esta contradição. Aperfeiçoaram o treino no seu autodomínio. Souberam conjugar a tensão com comportamento e mímica descontraídos, até indolentes. A mania que foi considerada elegante durante algum tempo, era de certa forma a apresentação desajeitada, subalterna, do problema. Esta frase é sintomática disso: "O rosto de um homem elegante deve ter sempre... algo de convulsivo e torcido... Estas caretas po­deriam atribuir-se a um satanismo natural". Assim aparecia a figura do dandy londrino na imaginação de um boulevardier pa­risiense. Assim ela se reflete fisionomicamente em Baudelaire. O seu amor para com o dandyismo não foi feliz. Não tinha o dom de agradar e na arte de dandy não agradar é um elemento importante. Naturalmente já deveríamos estranhar nele essa atitude. Porém, como verdadeira mania, ela o levou a profundo abandono porque com o crescente isolamento aumentou ainda sua inacessibilidade. Ao contrário de Gautier, Baudelaire não gostou do seu tempo, mas também não pôde isolar-se dele, como Leconte de Lisle. Não dispunha do idealismo humanitário de um Lamartine ou Hugo, e não lhe era dado, como a Verlaine, refugiar-se na devoção. Assumia sempre novas personagens porque não tinha uma convicção pró­pria. Flaneur, apache, dandy, ttapeiro, eram para ele apenas di­ferentes papéis. Porque o herói moderno não é herói — é o repre­sentante do herói. A modernidade heróica revela-se como tragédia em que o papel do herói está disponível. O próprio Baudelaire aludiu a isto veladamente numa observação à margem dos seus Sept vieillards.

Un matin, cepandant que dans Ia triste rue Les maisons, dont Ia brume allongeait Ia bauteur, Simulainet, les deux quais d'une rivière accrue, Et que, décor semblable à 1'âme de 1'acteur,

Un brouillard sale et jaune inondait tout 1espace, Je suivais, rodissant mes nerfs comme un hétos Et discutant avec mon âme déjà lasse, Le íaubourg secoué par les lourda tombereaux.

Cenário, ator e herói reunem-se nestas estrofes de uma forma inequívoca. Os contemporâneos não precisariam desta indicação. Courbet, ao retratá-lo queixa-se de que Baudelaire muda diaria­mente de aspecto. Champfleury diz que ele pode mudar sua fi­sionomia como um condenado em fuga. No seu necrológio maldoso, que revela muita perspicácia, Vallès chamou-o de ca­botino.

Em Baudelaire o poeta guardava o incógnito atrás das más­caras que usava. Tão provocador podia parecer no trato, tão pru­dente era na sua obra. O incógnito é a lei da sua poesia. A sua construção de versos é comparável ao plano de uma grande ci­dade, em que as pessoas podem movimentar-se despercebidas, es­condidas por blocos de edifícios, portões ou pátios. Neste plano, as palavras têm os seus lugares indicados com precisão, como os conspiradores antes de uma revolução. Baudelaire conspira com a própria língua. Calcula seus efeitos a cada passo. Foram precisa­mente aqueles que melhor o conheciam que se ressentiram do fato de ele sempre ter evitado se descobrir em face do leitor. Gide anotou uma discordância entre a imagem e a coisa, que era muito calculada. Rivière salientou, que Baudelaire parte da palavra rara e aos poucos aproxima-a cautelosamente do tema. Le-maitre fala de formas que contêm no ímpeto da paixão, e Laforque salienta a comparação de Baudelaire que desmente a pessoa lírica que entre no texto como elemento perturbador. "La nuit s'épaissait ainsi qu'une cloison" — outros exemplos poderiam encontrar-se em quantidade 92, acrescenta Laforque.

A separação das palavras em palavras que pareciam adequa­das a um uso elevado e em palavras que deveriam ser excluí­das desse uso, influenciou toda a produção poética e foi válida tanto para a tragédia como para a poesia lírica. Esta convenção permaneceu incontestada nos primeiros decênios do século deze­nove. A palavra chambre causava murmúrio desfavorável na repre­sentação do "Cid" de Lebrun. "Othello" numa tradução de Alfred de Vigny, fracassou por causa da palavra mouchoir, cuja menção era insuportável na tragédia. Victor Hugo começara a aplanar a diferença entre as palavras da linguagem corrente e as da lin­guagem elevada. Sainte-Beuve procedeu de forma semelhante. Em Vie, poésie et penses de Joseph Delorme declarou: "Tentei... ser original a meu modo, de um modo modesto, burguês... Chamava as coisas da vida íntima com o seu nome; mas a cabana estava mais próxima de mim que a alcova". Baudelaire ultrapassou o jacobinismo lingüístico de Victor Hugo e as liberdades bucólicas de Sainte-Beuve. Suas imagens são originais pelo prosaísmo dos objetos de comparação. Procura o processo banal para aproximá-lo do poético. Fala dos "vagues terreurs de ces affreuses nuits/Qui compriment le couer comme uri papier qu'on froisse". Este comportamento lingüístico, que caracteriza o artista em Baudelaire, torna-se realmente importante somente quando o poeta é alegó­rico. Tal comportamento torna a sua alegoria desconcertante, o que a distingue das alegorias comuns. Lemercier foi o último a enriquecer com elas o parnasianismo do Império; tinha-se chega­do ao ponto mais baixo da poesia classicista. Baudelaire não se preocupava com isto. Encontra alegorias em quantidade; modifica totalmente o seu caráter pelo ambiente lingüístico em que as insere. As Fleurs du mal são o primeiro livro que empregou na lírica pa­lavras não só de proveniência prosaica mas também urbana. No entanto, de modo algum evitaram características que, embora livras da pátina poética, mesmo assim chamam a atenção pelo seu es­tereótipo. Há palavras como quinquet, wagon, ou omnibus; e até bilan, réverbière, voirie. Assim é o vocabulário lírico onde apa­rece de repente, sem qualquer aviso, uma alegoria. Se o espírito lingüístico de Baudelaire pode ser compreendido, é nesta coinci­dência brusca. A esta, Claudel deu-lhe uma feição definitiva. Bau­delaire, escreveu uma vez, unia a forma de escrever de Racine com a de um jornalista do Segundo Império. Nenhuma palavra do seu vocabulário está destinada, de antemão, a uma alegoria. Ela recebe essa tarefa conforme o assunto a ser abordado e destrinchado. A sua poesia é um ato de violência e nisto ele recorre a alegorias. São as únicas que fazem parte do segredo. Em Ia Mort, ou le Souvenir, le Repentir ou le Mal, encontram-se tipos de es­tratégica poética. Estas palavras reconhecíveis pelo emprego da maiúscula, surgem repentinamente no meio de um texto, que não recusa nem o vocábulo mais banal, o que revela a intervenção de Baudelaire. A sua técnica é bem putschista.

Poucos anos após a morte de Baudelaire, Blanqui coroava sua própria carreira como conspirador com uma memorável obra prima. Foi após o assassinato de Victor Noir. Blanqui queria ter uma visão geral do estado das suas tropas. De vista, conhecia apenas seus chefes subalternos. Não se sabe até que pontos todos os da sua companhia o conheciam. Entendeu-se com Granger, seu ajudante, que deu as ordens para uma revista dos blanquistas. Geffroy descreveu-a da seguinte maneira: "Blanqui... saiu de casa armado, disse adeus às irmãs e ocupou seu posto nos Champs-Élysées. Segundo entendimento com Granger, aí se devia realizar o desfile das tropas cujo misterioso general era Blanqui. Ele co­nhecia os chefes e devia então ver seus soldados marchar em fila, em passo militar, em formações regulares.

Aconteceu como combinado. Blanqui realizou sua revista, sem que ninguém desconfiasse algo deste estranho espetáculo. No meio da multidão, que assistia, encontrava-se também o velho Blanqui encostado numa árvore, e viu atentamente aproximar-se em co­lunas os seus amigos. Eles se aproximaram mudos, debaixo de murmúrios, constantemente interrompidos por aclamações". A força que tornou isto possível, poderia ser transmitida pela poesia de Baudelaire.

Baudelaire quis reconhecer ocasionalmente a imagem do herói moderno. Também no conspirador. "Abaixo as tragédias!" — es­creveu ele durante os dias de Fevereiro na Salut public. "Abai­xo a história da Roma antiga! Não somos hoje maiores do que Brutus?". Maior que Brutus era na verdade um exagero. Por­que quando Napoleão III ocupou o poder, Baudelaire não reco­nheceu nele o César. Nisto Blanqui lhe era superior, porém mais profundas que suas divergências eram suas afinidades — a teimo­sia, e a impaciência, a força da indignação e do ócio, mas tam­bém a impotência. Num verso famoso Baudelaire despede-se de um mundo "em que a ação não é sinônimo do sonho". Seu sonho não estava tão só como lhe parecia, porque a ação de Blanqui foi sinônimo do sonho de Baudelaire. Ambos estão entrelaçados como as mãos entrelaçadas numa pedra debaixo da qual Napo­leão III enterrou as esperanças dos combatentes de Junho.